Milhares de famílias no Rio Grande do Sul enfrentam a dura realidade da insegurança alimentar, um cenário onde a garantia de uma refeição básica é um luxo diário e não uma certeza. Mães e pais veem-se em dilemas angustiantes, forçados a escolher entre necessidades fundamentais como pagar contas, comprar remédios ou simplesmente alimentar seus filhos. Este drama se acentua com datas comemorativas, como o Natal, onde a esperança de um presente simples ou de uma refeição especial é ofuscada pela constante preocupação com o prato vazio. A falta de acesso regular e permanente a alimentos adequados atinge cerca de 1,7 milhão de pessoas no estado, conforme dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), expondo uma chaga social profunda que exige atenção e soluções urgentes.
O dilema diário: escolhas impossíveis pela comida
A realidade de muitas residências no Rio Grande do Sul é marcada por decisões dolorosas, onde o orçamento apertado impõe sacrifícios impensáveis para a maioria da população. Famílias inteiras são forçadas a priorizar o essencial, e muitas vezes, o “essencial” se resume a garantir apenas o mínimo para sobreviver.
A luta de mães solo e famílias
Jéssica de Mello, uma dona de casa que cria sozinha três filhos pequenos e um irmão, personifica essa luta. Com a saúde fragilizada, tendo perdido um pulmão e dependendo de medicação cara, sua rotina é um cálculo constante de escassez. Ela narra dias em que a única opção para alimentar as crianças era arroz, sem sequer um acompanhamento básico. “Semana passada foi um dia que a gente só tinha arroz. Não tinha nem azeite. Os guris diziam: ‘mãe, não tem feijão?’ Não tem”, relata, expondo a dor de negar um alimento tão simples. As escolhas de Jéssica são um triste exemplo do que milhões enfrentam: pagar as contas de água e luz, comprar os remédios necessários para sua sobrevivência ou garantir que seus filhos não durmam com fome. “Eles pedem pão. Não tem. E eu vou dizer o que pra eles? Hoje não tem”, desabafa, expressando a impotência diante da fome que assola sua casa.
Natal: entre presentes e a refeição
A chegada do Natal, que para muitos é sinônimo de celebração e partilha, transforma-se em um período de ainda mais angústia para famílias em situação de insegurança alimentar. Camila Rodrigues, mãe de sete crianças, descreve o sofrimento de não poder atender aos desejos simples de seus filhos. “Não é fácil ver teu filho pedir as coisas e não ter. O que dói mais agora é que chegou o Natal, que eles vão ver os outros e a gente não tem como dar as coisas”, diz, visivelmente emocionada.
Alex Silva da Silva, desempregado, ecoa o mesmo sentimento. Ele se depara com a mesma escolha cruel: proporcionar um presente de Natal para seus filhos ou garantir que tenham o que comer. “Ou eu compro um presente de Natal ou eu compro comida pra eles”, afirma, resumindo o dilema que rouba a magia da data. Nestas comunidades, entre ruas apertadas e lares que narram histórias de resistência diária, a fome é uma presença constante, especialmente para as crianças. A privação alimentar na primeira infância, em particular, pode ter consequências devastadoras e irreversíveis no desenvolvimento, deixando marcas para toda a vida.
Radiografia da insegurança alimentar no Rio Grande do Sul
A insegurança alimentar não é apenas um problema individual; é uma crise coletiva com raízes profundas e manifestações alarmantes que afetam a saúde, o desenvolvimento e o bem-estar social.
Os impactos invisíveis na saúde infantil
A nutricionista e sanitarista Mariana Petracco de Miranda alerta para os sinais sutis e, por vezes, negligenciados da desnutrição. Ela aponta sintomas como perda de massa muscular, fraqueza, tontura, queda de cabelo, unhas fracas, agitação excessiva na escola e dificuldades de concentração. “A desnutrição impacta em tudo, desde a parte fisiológica até a comportamental”, explica Mariana, ressaltando que as consequências vão muito além do aspecto físico, afetando o aprendizado e o comportamento.
A preocupação com o futuro das crianças é uma constante para avós como Mara Regina Carvalho. Para assegurar que suas quatro netas não passem fome, Mara frequentemente abre mão da própria refeição. “Já várias vezes deixei de comer pra deixar pra elas. A gente chora escondida pra elas não verem”, revela, demonstrando a profundidade do amor e do sacrifício que se tornaram rotina.
Números que revelam a dimensão do problema
No Brasil, a insegurança alimentar é uma realidade para 18,9 milhões de famílias, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A forma mais grave dessa condição significa não ter comida todos os dias, uma situação que atinge diretamente a vida de milhões.
Entre os mais vulneráveis, as crianças se destacam. Dados mostram que 3,3% das crianças de 0 a 4 anos e 3,8% das que têm entre 5 e 17 anos vivem sob essa ameaça constante. No Rio Grande do Sul, o cenário é igualmente preocupante: entre 2021 e o ano atual, 1.271 crianças e adolescentes foram internados devido à desnutrição, um indicativo alarmante da severidade da crise no estado.
O perfil das vítimas da fome
O pesquisador Juliano de Sá enfatiza que os números da fome não são meras estatísticas; eles representam vidas, com “rosto e endereço”. Ele destaca que a insegurança alimentar afeta desproporcionalmente certas parcelas da população. “Sobretudo são mulheres pretas da periferia, mães solo, que sofrem as principais consequências dessa falta de acesso aos alimentos. Nossas crianças e adolescentes também convivem com a insegurança alimentar”, pontua Sá.
Regina Lourenço, mãe solo de três crianças, vive a cada dia a incerteza de ter o que colocar na mesa. A pergunta “mãe, estou com fome?” tornou-se um lembrete doloroso da sua batalha. “É triste ver que tu não tem as coisas dentro de casa para dar pra eles”, compartilha Regina, revelando o peso emocional dessa privação.
Estratégias para combater a fome e a urgência da ação
A complexidade da insegurança alimentar exige uma abordagem multifacetada e integrada, que transcenda a assistência emergencial e promova soluções estruturais. Juliano de Sá aponta um caminho claro para a superação deste desafio social. Ele defende a necessidade urgente de “política pública, mobilização, investimento de recursos”, visando fomentar o acesso a alimentos adequados e saudáveis para todos, com foco especial nas famílias que têm crianças em casa. A implementação de programas que garantam a renda mínima, acesso à educação e saúde, e o fortalecimento da agricultura familiar são passos fundamentais para construir uma sociedade mais justa e segura alimentarmente. Enquanto as soluções de longo prazo não se concretizam, histórias como a de Jéssica continuam a se repetir, reforçando a urgência da ação e o medo constante que a fome impõe. “Eu tenho medo. Medo de não ter as coisas pra eles. Medo de vir a óbito e deixar eles assim”, expressa Jéssica, traduzindo o desespero de quem vive no limite e a responsabilidade social de agir para mudar essa realidade.
Perguntas frequentes sobre a insegurança alimentar no RS
O que é insegurança alimentar?
A insegurança alimentar ocorre quando uma pessoa ou família não tem acesso físico, social e econômico regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para uma vida saudável e ativa, de acordo com suas preferências alimentares.
Quem são os mais afetados pela insegurança alimentar no Rio Grande do Sul?
No Rio Grande do Sul, assim como no Brasil, os mais afetados são principalmente mulheres negras, mães solo, famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza, e moradores das periferias. Crianças e adolescentes também são um grupo de alta vulnerabilidade, com milhares de internações por desnutrição.
Quais são as principais consequências da insegurança alimentar nas crianças?
As consequências são severas e abrangem desde problemas físicos como perda de massa muscular, fraqueza e deficiências nutricionais, até impactos no desenvolvimento cognitivo e comportamental, como dificuldades de aprendizado, falta de concentração e agitação. Em casos graves, pode levar à desnutrição e internação hospitalar.
O que pode ser feito para combater a insegurança alimentar?
O combate à insegurança alimentar exige políticas públicas abrangentes, investimento de recursos em programas sociais e de distribuição de alimentos, fomento à agricultura familiar, geração de emprego e renda, e mobilização da sociedade civil. O foco deve ser no acesso a alimentos saudáveis e adequados para todos.
A conscientização sobre a insegurança alimentar e o apoio a iniciativas que combatem a fome são cruciais para transformar essa realidade. Informe-se e participe.
Fonte: https://g1.globo.com